quarta-feira, 10 de abril de 2013

O Amolador de Facas- 2ª Parte-


Sei que foi, ao que me lembre, mais ou menos assim:

Anos antes, não se sabe ou não se quer saber, exatamente quando, provavelmente antes de existirem Yakults ou até mesmo antes de existirem vendedores ambulantes, antes desta lista non-sense passar pela minha cabeça, existiam os Amoladores De Facas..

E antes dos Amoladores De Faca, antes quem sabe até mesmo das próprias facas..
Existiam os ciganos e seus circos com seus atiradores de faca
(neste caso, já depois da invenção da faca.)

E não foi nesta capital nem em nenhuma de que se tenha registro, quando ainda talvez nem fosse tão capital assim, seja lá qual fosse tal capital..que ocorreram os terríveis crimes, estes sim capitais, envolvendo nosso nono personagem, o último dos escolhidos, o nono cavaleiro de uma cruzada infernal, uma cruzada através da alma se é que há uma, de um homem, de um cigano- judeu- homossexual- afro descendente- brasileiro e assassino! que atendia e atuava sob a alcunha de Moisés De Jesus, o Gilete!

Peregrino de um caminho tortuoso nosso ‘herói’, assassino já nascera, além da extensa lista de predicados acima desfilada, um verdadeiro assassino, pois matara já no parto, a própria mãe quilombola gorda e bonita, que parecia que iria parir um porco, mas que apesar da pouca diferença entre o um e o outro nascera, ele.

O Pai um judeu holandês, reminiscente das poucas famílias que se arriscaram por estas plagas depois da retomada do recife pelos portugueses; esta sendo sua ancestralidade, dizia ele.

O Gosto pelo homossexualismo desenvolveu no exército onde serviu e de onde se serviram dele cabos, oficiais, sargentos e extensa patente.


Do mesmo Recife de que fora expelido, fugira do Pai, do exército e da Paróquia, cujo Padre, devido a um enraizado sentimento de racismo, dele nunca almejou mais do que alguns serviços de limpeza e conservação paroquiais.

Passava na ocasião pela sua cidade, se é que um afro descendente meio judeu tem alguma cidade pra chamar de sua..um circo esquisito e misterioso, como todo bom circo deve ser, daqueles que não existem mais. Pequenos, mas completos, com exceção à época, de um atirador de facas que morrera recentemente, deixando sua bela assistente e sua horrível trupe em situação complicada, dada a importância de tal número em um tão pequeno circo, que a míngua de artistas do calão penava por não conseguir ninguém para substituí-lo.

Nosso herói-assassino não pensando duas vezes e tendo sido no exército um exíminio; Maricas, e manipulador de armas brancas, pode-se dizer que começou a carreira engolindo espadas..tendo chegado a receber distinções na arte, embarcou com a trupe e nunca mais se ouviu falar dele como tal era, no exército ou em sua cidade natal.

Agora também desertor! devemos acrescentar à lista de suas máscaras sociais, fato que serve apenas como curiosidade mórbida, uma vez que tal monstro não merece sequer um nome que sua mãe lhe deu, perdão ou tampouco explicação.

Como nem Moisés nem Jesus tem nada a ver com tão hediondo ser, em obras e em brio.. e para aplacar nossa ira, que ainda é só minha, uma vez que ainda desconhecem a totalidade e profundidade das atrocidades por este perpetradas, vamos chama-lo doravante apenas pelo apelido com que ficou conhecido: O Gilete ou apenas Gilete se preferirem.

Pode-se dizer não ter sido mais do uma questão de tempo, e de pouco tempo, para que se adequasse as exigências artísticas que a sua nova profissão requeria, uma vez que o caráter e o ‘tropismo ancestral para o infortúnio’, este ele já os possuía.


O circo por sua vez era comandado por um único homem, um cigano de origem romena que atendia pelo nome de Júnior Miklus, o último de sua descendência, uma vez que não se casara e não tivera filhos. Seu pai e avô já haviam nascido no Brasil, o que para um cigano não faz a menor diferença, apesar de e de qualquer forma ser um puta de uma azar..

Enfim, aqui nasceram e aqui ficaram.

O Pai carreteiro de profissão, judeu antes de mais nada, ganhou uma pequena fortuna comprando e vendendo charretes e animais, em sua grande maioria e a princípio cavalos e bois para puxarem as charretes, depois outros de maior porte e valor, como elefantes, tigres, focas, camelos e leões para zoológicos e circos, daí a origem dos carros e animais que viriam a ser o cerne constituinte de seu próprio circo, pois quando da morte de seu pai sem saber o que fazer com toda aquela profusão de carroças, charretes, carruagens, vagões, traillers, cavalos, elefantes, tigres..sendo um prático e um preguiçoso, começou a considerar o que lhe parecia evidente e mais adequado no momento; além de uma propensão digamos natural ao perpétuo abandono de seu corpo em cavalgada..debandada sem parada..que seria, lhe pareceu o de montar seu próprio circo: Miklus Circus!

Ele já conhecia alguns artistas de rua, seu avô havia sido bufão nas cortes e talvez não por coincidência tinha tido sua primeira experiência sexual com uma mulher barbada, Bárbara, a Barata Barbada. Bárbaro, não?

..Aos poucos foram se formando os quadros de artistas, surgiram dali a pouco os irmãos siameses, Simão e Sebastião, a trupe dos trapezistas, duas duplas formadas por dois amigos que eram pro sua vez inimigos dos outros dois amigos da outra dupla..o que garantira uma precisão e voracidade nos espetáculos que para Miklus que sabia e para o público que não sabiam..eram indiferentes..haviam , é claro se agregado ao grupo dois doidos depois Palhaços, os Srs: Muquifu e seu assistente Mequetrefe..sete foram os anões qual coincidência..de uma mesma família e que se apresentavam pelos simples numéricos correspondentes, sendo portanto: O1, O2, O3.. fazendo-os de nomes artísticos, sendo O1 o mais velho e A7 a mais velha, havia ainda, é claro; o homem tatuado: Guaraci Merlhieg, que tinha o mapa do Brasil desenhado da cabeça aos pés, ao pé da letra e ao pé dele mesmo, este fazia enorme sucesso entre a molecada, que por sua vez só não tinham acesso visual as partes mais escondidas e distantes do país que ficavam por decoro inacessíveis ao público.. E é claro o falecido atirador de facas Monsieur Couteau cigano judeu francês cuja família viera pro recife na época de Maurício de Nassau e que por recife mesmo fixaram residência e findaram..também último de sua linhagem, assim como o próprio Miklus, que fazia ainda e além de proprietário, as vezes de apresentador, carregador, montador, cobrador e o que mais viesse a ser preciso. Miklus era um canalha preciso.

Dentre vários outros animais, serviçais e profissionais que foram se carrapatando a trupe, houve é claro e mister lembrar; o nosso ‘herói’, que no dia em que apareceu no circo, desapareceu na cidade..Ocupando com cara, facas e coragem o lugar do antigo atirador.

(Agora entram algo parecido com letreiros..dizendo algo do tipo..
..Alguns anos depois..)

Após anos de serviço emprestado ou prestado, imprestável ou não a Miklus e a si mesmo, já tendo percorrido os mundos e fundos de por aí, por aqui e por acolá..o Gilete, poderíamos dizer..num surto de humor negro, o que aqui no caso é mais que perfeitamente cabível, pra não dizer bem vindo e num espasmo de extremo mau gosto e maldade; dizer que..ele emperrou!

Perdera a mobilidade parcial da mão com que atirava mais precisa e fortemente suas suntuosas facas, perdera com isso o seu ponto de equilíbrio, dizia, pois esta se atrofiara de tal arte e em macabra dança de nervos e tecidos..Genética ruim ou talvez o escorbuto, muito comum não só entre piratas, corsários e lobos do mar em geral, mas também nas trupes de teatro, circo, de ciganos e etc..que rondavam-vagavam pelo mundo desde que o mundo veio a ser mundo..inválido para o circo, nem tão velho, nem tão novo..o que fazer?


A situação pegou a todos de surpresa, evidentemente, e além de passarem a comprar laranjas e limões em maior quantidade..puseram-se ele e Miklus, particularmente a pesar os fatos e pensar nas conseqüências e preços deste capricho da natureza, força do destino ou fraqueza do intestino..E posto que depois de muito deliberar, essa palavra é minha, pois digamos que ele pensaria que ao máximo teria..muito refletido! o que já era o bastante.. Miklus surgiu com uma idéia promissora, eu diria promissória..tire suas próprias conclusões..enfim e mais uma vez ele salvara Gilete!?..

Agora com a sugestão insistente, paternal e por todos muito bem vista, de que ele poderia se tornar um simples, servil e honesto: Amolador de facas!

Solução deveras genial, diga-se de passagem, solução que lhe permitiria continuar a trabalhar para o próprio circo nas cidades em que excursionassem garantido seu sustento e sua validade produtiva no seio de sua família de coração e de alma!

Dada sua habilidade com facas ficaria com aquilo como sua melhor alternativa...

Mas o destino tanto do fraco quanto do forte antes de tecer teias, produz aranhas e o de uns é daquelas grandes, viscosas, venenosas..

O Gilete de agora em diante só apontava suas facas para o centro do carrinho de amolar..
..não sei se todos aqui neste texto presentes hão de se lembrar de tal carrinho..ele se parece com um tipo de ‘cefadeira’, com uma única roda, uma grande lima ao centro impulsionada por essa mesma roda..é de ferro com duas alças em forma de v, visto de via aérea..e que amola tesouras, alicates, machados, foices, cortadores de grama, cortadores de cabeças..e até cortadores de unha! isso no caso daqueles profissionais que detinham uma técnica mais apurada ou quiçá algum dom divino ou artístico, não faço idéia...sei que este não era um destes..

Depois de outros mais não se sabe quantos, mas muitos anos de serviços imprestáveis.. deu nosso desafortunado ‘herói’, agora meio maneta, é bom lembrar, com e pelas contas de que suas contas com o circo, haviam e vinham em muito aumentando na razão inversa de seus ganhos, uma vez que agora como simples amolador de facas, ainda que sob a ‘égide-ajuda’ de Miklus, pois este que lhe concedera as beneces de poder continuar a ter seu própria casa-charrete a comer como e com todos os demais artistas e até com o próprio Miklus! isto sim, talvez poderia ser tido como azar..pois tudo parecia ir bem não fosse o malfadado, execrível e esconjurado dia em que veio a ouvir do próprio patrão que a hora do acerto chegara!..tendo-o chamado logo cedo numa manhã fria e chuvosa para lhe propor uma alternativa, uma espécie de troca de suas dívidas por mais serviços, serviços estes que cobririam suas custas aqui, no céu ou no inferno, que era por fim o destino de suas chances e almas..

A proposta feita era : ’ Moisés De Jesus, que sendo tudo o que já foi e tudo o que jamais virá a ser e que tendo escolhido esta vida que tem e que agora é minha, pois agora me deve em espécie e em espectro..A você tão somente! ofereço a chance de redimir-te de sua existência podre com a única a saída para tanto: mais podridão..abrir de vez teus caminhos para o reino do absoluto que, sabes, é de onde veio, e para onde voltarás..volta ao menos com honras, volta com o mesmo sangue com que nasceste..o sangue de crianças..Sim, crianças para sacrifício!..Que beleza e pureza maior que acabar com o sofrimento da vida ainda em seu nascedouro..Somos Bons..”Só faltou dizer junte-se aos bons..!?Gilete mesmo que de pouca fé, quase nenhum coração, sentimento de família ou justiça, exitou e saltou entre assustado e enojado. Todavia bêbedo de ignorância, rancor e dívidas considerou paulatinamente cada palavra que Miklus ousou continuar a lhe dizer ..as ‘hediondices’ que propôs..escutando meio parvo, meio excitado, ponderou por dias aquelas propostas sem sentido, amorais e inumanas..aquilo tudo ficou soando ressoando igual, exata e morbidamente igual, ao barulho da lima ao amolar a faca..tchein!tchein!tchein!tchein!tchein!tchein!..entretanto tamanha sua angustia, desespero e por que não dizer falta de amor a vida, acabou por aceitar..

Dalí em diante, uma vez vendida a alma e se mudado de vez para o inferno.. passou a selecionar em todas cidades e vilas em que se apresentavam, em cada casa que visitava; uma por vezes duas crianças, que deveriam ter algumas características que os rituais executados exigiam..

..Cada ‘amolada’ paga era convertida em entradas para o espetáculo, e durante as apresentações Gilete já conhecido das crianças as levavam com a promessa de uma pipoca doce ou uma maça do amor..

Na verdade a única característica “exigida’ era a de que fossem meninas brancas..

Talvez fosse o preço que o ódio racial de um cigano-judeu sempre escoraçado e de um afro descendente ex-escravizado? inconscientemente cobrassem..

Este que vos conta o conto e que é o narrador-orador dessa narrativa meio fantástica meio fantasmagórica, ouviu esta estória pela boca do próprio amolador.. estória pela esmagadora maioria felizmente desconhecida, misto de lenda urbana e cigana.. ainda assim alguns detalhes de ordem ritualísticas permanecem inexplicáveis uma vez que não são de meu conhecimento pleno, nem queria que fossem, pois acreditem já tenho minhas próprias dificuldades em lhe dar com tudo isso, em dormir a noite, em freqüentar circos, em amolar facas..

Entretanto uma questão me saltou aos olhos, e era a do porque meninas?!Brancas!?

Algo ligado as origens Romenas, quiça vampirescas de Miklus, sangue de virgens, rejuvenescimento, pacto com demônio ou qualquer uma dessas baboseiras folclóricas e excitantes que ouvimos por gerações a respeito desse tipo de ritual..dessa espécie de morto vivo, de demônio..

Todavia, fácil simples e direta resposta obtive:

“Para que nasçam cada vez menos gente nesse mundo maldito!“..e porque os brancos merecem..

Nestes pontos ousei com ele concordar..mundo maldito..brancos assassinos..


Dito isso desejo tão somente retratar o que passou a ser a vida deste agora amolador de facas que ao indicar a casa e a criança a ser seqüestrada e depois levada para o interior, centro nevral do carro maior, daquele circo menor em tamanho e compaixão, círco macabro, circo do diabo, circo dos horrores que deve ser odiado por todos que tenham qualquer coisa, mesmo que vaga ou indefinida entre seus crânios e cérebros, uma matéria imaterial que todos possuem, mas nem todos reconhecem: uma alma !?


Com suas inúmeras tesouras, facas e alicates eles dissecavam, torturavam, estripavam, deformavam e esquartejavam suas pequenas vítimas entorpecidas com os doces envenenados e que tinham seus já fracos gritos abafados por fortes músicas ciganas que tocavam em perfeita harmonia com aquelas vozinhas que iam ficavando cada vez mais e mais inaudíveis no torpor das frias noites de ventos sibilantes que levavam enfim; vozes e espíritos..

Seus restos eram dados aos leões e misturados ao fortíssimo e eterno cheiro de cocô de elefante, de gente fedida e dos demais animais em geral, se tornavam uma mistura de odores malditamente perfeita e que punha fim a qualquer vestígio ou suspeita.

Dizem que depois que se sente cheiro de morte não se sente mais cheiro de vida..

Perguntaríamo-nos nós seres secientes o por que, os porquês disso, o que leva pessoas de sensibilidade artística a executarem tais atos..Se existe um D´us , ou um demônio que induz tais pessoas a tais atos, se o estado mental induzido pela magia é explicação para a falta de compaixão, se a fé é cega e se a justiça é mesmo divina neste mundo terreno, e até mesmo se existe uma justiça para os sádicos e outra para os sábios?

E mais: Se esse D´us existe, porque nunca faz nada!?!

Hoje passados alguns anos da primeira vez que tive contato com Gilete nesta rua deste bairro onde comecei a escrever este, ainda me arrepio em pensar de porque fui entre tantos, o escolhido para ser o portador dessa doente história para aqueles que por ela se interessar possam..é verdade que a época eu morava e trabalhava em um açougue nesta rua, como disse, com isso já tinha minhas próprias mortes a carregar na alma e fazia uso com grande freqüência de seus serviços, ocorre que por fim por mim ele se afeiçoou, num misto de atração sexual, culpa ou sei lá o quê.


Fato é que num começo de noite da última noite de um ano qualquer, ambos em fim de serviço e já embriagados por algumas cachaças a mais, ele me contou tudo o que por minha vez lhes contei, em um tom de confisão..Fiquei atônito sem saber o que dizer ou pensar e é claro pensei num primeiro momento que se tratava de invenção, excesso de criatividade, de cachaça ou loucura pura..ocorre que daquele dia, e ano em diante nunca mais o vi ou tive dele notícias.

É claro que avisei a polícia recontei-lhes toda a história, passei por doido, mentiroso, chegando a ser preso como cúmplice, mas como não haviam provas de nada, tão pouco do que lhes contara, e por minha ficha criminal não incluir seres de nossa espécie, fui liberado e vigiado pela polícia que nunca mais confiou plenamente na minha índole, e tão pouco na procedência dos produtos que vendia..


Toda vez que ouço ou vejo um amolador de facas, ou um desses ambulantes, me vem a mente toda essa estranha história da qual me desculpo por haver com vocês leitores; compartilhado.

E é essa a origem, quero acreditar de minha impaciência e porque não dizer desconfiança em relação a estes profissionais, penso ainda que tenha escrito este para não morrer com esta história atravancando meu sonhos..passados ou futuros..


Um comentário:

  1. Conforme prometido publico a segunda e última parte de O Amolador de Facas, no exato dia em que comemoro meu aparecimento nesta era de degradação, desamor, demência, desordem, desunião, desencontro, desculpas..

    Aí está para a posteridade, que é de onde desconfio, será conhecido, talvez quiça, nunca..entretanto e para quem interessar possa..

    Um conto de terror cigano!!!

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