segunda-feira, 3 de junho de 2013

A cabana do pai do Tomás.

À Harriet Beecher Stowe


Não sei sequer, se quero, escrever estas linhas.

Não sei se se trata de querer - bem-me-quer, mal me quero - de poder ou não, da mais completa falta de poder, ou de juízo, de empoderamento malfazejo, se desculpa ou ensejo ou de muito pouca inclinação ao trabalho ou ausência de algo pior para fazer...

Não sei se deveria, se o dever ia me transformar em uma pessoa melhor, se existem pessoas melhores ou piores, se existe uma só pessoa boa?!

Sei só que existem pessoas sós...

Não sei nem ao certo se o pai do Tomás ainda vive?

Sei eu só, comigo, sem migo, sem parentes, sem amigos e para o eu que vive em mim mesmo... Que "ele" nunca mais voltou àquela cabana depois daquela ocasião...

Viviam Vivian, sua madrasta, Tomás e eu em confortável casa numa região nem tão nobre nem tão pobre, desta mesma exata cidade em que vives.

Poder-se-ia dizer que éramos uma família abastada, ou abastarda, uma vez que o próprio Tomás era filho torto de um relacionamento extra conjugal que seu pai, o dono da casa e da cabana em questão, tivera quando da ocasião do primeiro casamento. Sua mãe Sulamita sumira em direção a Altamira, pois nunca quis ou pode ter filhos e por não aceitar ser a outra... A outra, que era a original, pedira divórcio por não aceitar nem uma coisa nem (a) outra.

Tomás ficara como um espólio de uma herança maldita.

Vivian chegou como mais uma mulher na vida dele e para bem, ou para mal, nunca fizera em sua(s) vida(s) a menor diferença.

Indiferença era seu segundo nome.

Tomás me era um bom amigo, quase um irmão, melhor que os irmãos que jamais tive.

Tínhamos uma relação afetuosa e para mim, e até onde sei também para ele, de grande valor.

Vivi por anos como uma espécie de agregado da família, uma vez que eu sim sou; fui e sempre serei, órfão de pai, mãe, parentes... Nasci pelo parto normal de uma chocadeira, acredito eu, uma vez que em minha certidão não consta nada além da data e da hora em que fui expelido, numa espelunca qualquer do centro desta mesma cidade.

Fui adotado pela primeira esposa, que, infértil, pensava na caridade e na formação de um núcleo familiar, até a chegada de Tomás... Duas vezes abandonado! Mas não guardei dele o rancor, uma só vez abandonado, não era culpado.

Infrutífero dizer que éramos uma “família” pouco ortodoxa, nem católica, nem protestante, pouco conversávamos, de nada protestávamos, em nada críamos.

Eu era franzino, esquálido, lembrando por vezes o torto esquadro do esboço de um espantalho. Tomás guardava uma compleição também estreita e não exibia nem traço físico digno de maiores notas.

Só a título de curiosidade Vivian parecia um fantasma de tão pálida, branca como o mármore de Carrara e o pai de Tomás, este pode-se, deve-se dizer; era praticamente uma alma despenada! A carranca de um ser. Homem alto, magro, uma barba rala, feita à serrote, com uma cara de lenhador canadense. De absoluta falta de tato ou sentimentos aparentes à parentes.

Vivian era apenas um belo vulto que lá vivia.

Talvez por isso eu e Tomás nos apegáramos tanto um ao outro.

O conforto material pode trazer àqueles que nada tiveram uma certa flexibilidade moral, vindo eventualmente a ser um excelente substituto do carinho ou da afeição, e por que não dizer; um substituto ainda melhor, pois palpável e certo!

Assim sendo e assim tendo sido, devo dizer que tive grande facilidade em me adaptar àqueles a quem o destino me oferecera como família.

Chego hoje distante de tudo e de todos a acreditar, num esforço hercúleo de compreensão sentimental, que em essência kármica não é muito diferente da constituição tradicional, das tradicionais famílias cristãs, mulçumanas ou hinduístas... Afora o fato de que em meu caso dever ia-se acrescentar ao acaso; o azar, ou por fim, a sorte de ter sido um forte, e sobrevivido a tudo, a ponto de vir aqui lhes contar...

Que julguem os juízes!!!


O pai de Tomás além de bem sucedido homem de negócios -todos escusos- era por hobby caçador à moda antiga, daqueles que se orgulhavam e ostentavam cabeças de animais empalhadas, armas e troféus em meio à baranguiçe endêmica da decoração de casas de famílias, de um modo geral...

Como todo mau capetalista e caçador que se preze era um homem frio, distante e calculista, sendo estas qualidades quase que uma espécie de requisito para se vencer na selva da cidade, na guerra dos negócios (escusos ou não) e em campo aberto, no calor da caçada.

Fui trazido ao aconchego do lar desta família desmembrada, numa semana de natal, ainda criança de colo. Tomás era por sua vez não muito maior, Vivian recém-chegada, mais parecia um troféu a mais exposto na gigantesca sala.

O pai de Tomás sempre me parecera um daqueles enormes ursos empalhados que vemos nos desenhos do Pica-pau ou em algum filme de Sessão da Tarde.Imóvel e “impassível como a mobília” com os dentes arqueados saltados para fora, prontos a nos devorar...

É claro, e a um só tempo obscuro, que muito do que sei sobre minha chegada e meus negros primeiros anos me foram contados no leito de morte por Vivian, que vi não mais viver quando ainda jovem, muito jovem.

Três vezes abandonado!, não que tenhamos eu e ela, ou eu Tomás e ela desenvolvido algum específico ou especial amor uns pelos outros, mas talvez e quiça tenhamos tido uns pelos outros, uma espécie de dó mútua que se tornou de certa forma e sob alguma medida em algum tipo de carinho... Contudo muito diferente e distante do que me disseram ser o amor verdadeiro de uma mãe...

Mas ainda aqui Vivian vive! vivo eu e vive Tomás!!!

Quero crer para não ter em absoluta e irresoluta má conta o homem que afinal me criou, me deu um lar, me deu possibilidades físicas reais de me desenvolver e viver... Não ser um homem mau, mas tão somente: amaldiçoado... Amaudiçoado...?!

Este homem passava seus finais de semana em uma cabana que possuía, e que o possuí à beira de um lago em um braço de uma represa, distante uns cerca de 200km da cidade... Raros eram os finais de semana em que tínhamos autorização de para lá nos dirigirmos, família Frankenstein que éramos..

Me lembro de umas poucas ocasiões, tão poucas que não tenho muito o que dizer do local, além de que era uma cabana aos moldes destas dos seriado de Daniel Boone, de madeira, tamanho médio, com uma ampla sala com lareira, e não mais de um ou dois quartos, varanda virada com vistas para o lago parado, e nada mais. Era o retiro do retirante, o lugar onde o pai de Tomás se afastava ainda mais de nós, de todos e de si mesmo...

Acredito que certos homens prescindem de religião ou de cultos para encerrarem em si forças malfazejas... Creio que esse era um desses homens!

Como disse, não que fosse um homem exatamente mau, mas não praticar o bem, é senão uma forma de manter o mau vivo, de perpetuá-lo.

Nunca pude compreender a natureza desses exílios em que ele se metia, tão pouco Tomás,que, criança mimada que era e sujeito assujeitado que se tornou, nunca se pronunciou ou questionou-o a respeito de nada... E Vivian vivia vida vadia vazia vaticina e vulgar de madame de porra nenhuma.

E assim foram-se os anos passando e atropelando-nos, tendo eu como podem ver me tornado quando muito em um cínico e inescrupuloso herdeiro de uma se não boa situação, ao menos infinitamente melhor do que teria, e tive; por nascença.

Mas algo em mim levou-me a desenvolver um lado espiritualista, dir-se-ia-se, e me descobri um tipo de sensitivo, de médium... Médico da alma.

Lembro-me, como se fosse amanhã, da primeira vez em que percebi naquela cabana os espíritos de animais mortos, e o espírito morto daquele animal vivo a que chamávamos de pai.

Havia uma coruja empalhada que me olhava com seus olhos amarelos esbugalhados e suas enormes asas abertas e me dizia:

-Esse homem caça algo mais que simples corpos! Atenta-te!!!

Gostaria de dizer em minha defesa que, até onde sei, estes “dons”, são algo que vem naturalmente, não sendo uma escolha ou algo que escolhemos, apenas sentidos, apenas sentimos.

E como tudo o que está além do mundo físico-tísico da vã compreensão humana, nos é dado como uma herança macabra por motivos que desconheço.

Anteriormente numa última noite de final do último ano em que viveu, senti, ao cruzar com o pai de Tomás pelo corredor da casa, um calafrio tão frio percorrer-me todo o corpo que creio que se não estivéssemos no aconchego do lar em pleno verão tropical, ter-me-ia congelado as tripas! quando olhei-o de volta vi - juro por todo o panteão dos deuses gregos e hindus - Vi um vulto se despregar dele como um prego se solta de uma parede de gesso!

Confuso culpei o vinho pela visão que tive... Mas ao me recostar ao travesseiro aquele vulto me veio e se deitou comigo, pregado ao meu sensível e sensitivo ser como um prego de aço em muro de concreto!

Dali, sem Gala, em diante, fui-me quedando cada vez mais distante daquela figura paterna, que a mim nunca fora exatamente fraterna... Mas sofro por Tomás!

Talvez tal hiper-sensibilidade e desapego naturais de órfão tenham a mim sido dados para protegê-lo do gelo daquele coração, da família despedaçada, da sorte amaldiçoada que tivera Tomás...

Tão pouco eu sou um homem de fé, quiçá de fezes!

Entretanto e hoje distante, digo-lhes ceticamente pensar ser eu, espécie qualquer de anjo da guarda daquele meu torto irmão.

Senti, sentia, que agora naquela casa vazia, sem a presença de uma alma feminina, estávamos cada vez mais enclausurados àquele espírito inferior, àquele espectro ambulante, que ao cabo tinha erguido um império de nada! de dinheiro distância desdém e desunião...

Nessa altura, uma vez que tínhamos Tomás e eu atingidos a maioridade legal, ele não mais precisava legalmente de nos fornecer sequer sua presença física, isolando-se agora quase completamente em sua cabana à caça de suas almas.

Próximo da região em que se desencontrava a tal cabana, existia-resistia uma comunidade de índios Maxacali que dividia com o pai de Tomás o fruto de suas caças, tendo sido por várias vezes surpreendido e repreendido pelos índios devido a seus métodos nada éticos, mas não chegando a terem nenhum tipo de desentendimento mais grave, ou querela que pudesse render problemas para quaisquer um dos lados...

O único detalhe que vim posteriormente ouvir contar, através de inquérito policial, é que o pajé da tribo, declarara sentir um grande vazio se apoderar de toda a região na mesma época em que ele construíra a cabana e que começara suas incisivas caçadas.

Me foi ainda relatado pelos oficias, e não oficialmente pelo pajé, que na época em que foi visto pela última vez havia sido encontrado na região um grande lobo, como não se via há anos, e que este animal rondara a cabana, e a tribo, por noites sem fim. Talvez não por coincidência o pai de Tomás passara a viver em definitivo na cabana, nos deixando com uma governanta na casa na cidade. A obsessão pela caçada o prendera em definitivo e nós não representávamos mais nem espetáculo nem empecilho a seu espírito empobrecido.

Era um começo de uma manhã ainda muito escura e o caçador terminava de arrumar seu arsenal no silêncio sepulcral da aurora, quando como uma lufada de vento o enorme lobo atravessou a janela da cabana, re transformando o vidro em areia... Desfazendo-se da carne, voltando a ser carbono, éter e hidrogênio como um gênio que sai em forma de fumaça de sua lâmpada, entrou como uma tempestade para dentro do corpo do caçador, que, retorcendo-se enlouquecido uivando enfurecido, pegou com uma das ainda mãos - a outra pata se debatia no chão da cabana, fazendo-se ouvir o barulho infernal por toda a região- e atirou através do crânio do monstro uma bala tão poderosa que se alojou pra sempre na alma daquele que um dia fora um homem...

2 comentários:

  1. Kra isso tá demais..lá vai vc se inserindo na tradição de contistas de realismo fantástico..Fantástico!!!

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    1. Prefiro pensar em contos de terror..mas valeu Sr. anônimo!

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